Massacre no restaurante chinês

Foto Jornais História de São Paulo

No crepúsculo da Quarta-Feira de Cinzas, no dia 2 de março de 1938, a cidade pulsava em ressaca carnavalesca. As ruas estavam repletas de foliões exaustos, rostos cobertos de confetes e serpentinas pisoteadas pelo fervor das celebrações. Porém, na movimentada Rua Wenceslau Braz, próxima à icônica Praça da Sé, um palco macabro aguardava aqueles que se aventuravam a testemunhar sua brutalidade.

O pequeno e modesto restaurante chinês Órion, conhecido por suas iguarias exóticas e acolhimento caloroso, escondia segredos obscuros entre as mesas e cadeiras. Ali, em meio ao aroma de temperos orientais, um pesadelo inimaginável se desdobraria.

Na alvorada daquela quarta-feira fatídica, Pedro Adukas, um cozinheiro de origem lituana, dirigia-se ao seu posto de trabalho no Órion, sem saber do horror que o aguardava. Ao se aproximar do estabelecimento, um pressentimento incômodo o assaltou. O portão de entrada, habitualmente trancado, encontrava-se entreaberto, como um convite perturbador para adentrar em um pesadelo.

Movido por uma curiosidade temerosa, Adukas atravessou o limiar. O início da penitência da Quaresma seria maior do que o cozinheiro jamais poderia esperar.  Diante de seus olhos atônitos, poças de sangue inundavam o chão, enquanto corpos mutilados jaziam como testemunhas silenciosas de um inimaginável ato de violência. Severino Rocha e José Kilikevicius, garçons conhecidos por suas habilidades e sorrisos cativantes, encontravam-se inertes, com os rostos desfigurados por golpes brutais. Ao lado deles, a imagem chocante do proprietário do estabelecimento, o Sr. Ho-Fung. A esposa de seu chefe, Maria Akiau, estava no andar de cima, assassinada por estrangulamento. Adukas vislumbrou o horror que haviam enfrentado seus chefes e colegas durante seus últimos suspiros.

Em disparada, o cozinheiro deixou o restaurante e dirigiu-se à Central de Polícia. Em minutos, as autoridades policiais chegaram ao palco macabro montado no restaurante e começaram sua investigação. O autor do acontecimento macabro não tivera tempo para abrir o cofre, ou não se interessara por ele, dentro havia cadernetas de anotações, balancetes e uma quantia de vinte e um contos de réis. O assassino, depois de massacrar quatro pessoas, jantou em meio as suas vítimas e um rio de sangue.

A arma utilizada nessa matança hedionda foi encontrada no quintal do estabelecimento: um caibro quase circular, medindo 71 centímetros de comprimento e pesando 1,23 quilos.

A notícia do massacre espalhou-se como fogo na floresta seca. Os jornais da época estamparam manchetes em letras garrafais, pintando o acontecimento como uma autêntica “chacina”. A comoção se espalhava pelas ruas, ecoando nas conversas sussurradas em esquinas sujas e cafés enfumaçados. Uma sombra pairava sobre a cidade, enquanto os cidadãos, perplexos e amedrontados, buscavam respostas para um crime tão hediondo, entretanto, a identidade do assassino continuava um mistério.

A investigação, conduzida pelas autoridades policiais, se lançou em uma busca desesperada por pistas e verdades ocultas. Suspeitas recaíram sobre estrangeiros presentes na vizinhança, como japoneses, chineses e lituanos, cujas conexões com o restaurante e seus donos eram exploradas meticulosamente. A cada depoimento, a teia se estendia, abrangendo frequentadores assíduos e visitantes do local, na esperança de desvendar o enigma sangrento.

Entre os investigados, destacava-se Manoel Custódio Pinto, garçom e o mais antigo empregado do restaurante. Ele foi submetido a interrogatórios repetidos pelo delegado Pedro de Alcântara Carvalho de Oliveira, encarregado do caso. Foi somente no terceiro interrogatório, em 4 de março, que Manoel mencionou o nome de Arias de Oliveira.

Projetando-se como a figura central desse enredo sombrio, Arias de Oliveira, um homem negro que havia trabalhado como ajudante de cozinha no local por apenas 16 dias e fora demitido por Fung na Sexta-Feira de Carnaval, começou a ser investigado.

Arias havia chegado a São Paulo em 1937, vindo de Franca, no interior do estado. Desconfianças pairavam sobre ele devido a informações falsas fornecidas em um cartório, nas quais afirmava ser natural de Franca e nascido em 1º de janeiro de 1912, numa tentativa de evitar o Serviço Militar. Ele rapidamente se tornou o principal suspeito do crime, especialmente por suas contradições e omissões. Em 11 de março, Arias foi preso, mas as autoridades policiais optaram por não mencionar o crime, a fim de preservar a investigação para a realização de uma “perícia antropopsiquiátrica”. Pela primeira vez, a polícia paulista recorria a essa técnica inovadora para esclarecer um delito desse porte. O delegado Pedro de Alcântara convocou uma equipe de especialistas para auxiliá-lo nessa complexa tarefa, incluindo Ricardo Gumbleton Daunt, chefe do Serviço de Identificação, Edmur de Aguiar Whitaker, médico psiquiatra, Oscar Ribeiro de Godoy, médico antropólogo, e Pedro Moncau, médico endocrinologista.

Arias foi submetido a interrogatórios e testes em três ocasiões. Os resultados apontavam para sua culpa como assassino, no entanto, Arias manteve sua negação incansável até 19 de março. Foi nesse momento que ele fez sua primeira confissão, admitindo ter estado presente no local do crime, mas afirmando que Manoel era o verdadeiro responsável pelas mortes.

Posteriormente, Arias assumiu a culpa integralmente. Ele relatou que, desde sua chegada a São Paulo, vindo de Franca seis meses antes, enfrentara inúmeras dificuldades, chegando até mesmo a passar fome. Durante o Carnaval, ele brincou em um tablado montado na Praça do Patriarca e, na noite anterior ao crime, dançou até a meia-noite. Em seguida, foi à casa de um amigo, na Rua Santo Antônio, e pegou seu paletó. Durante seu retorno, enquanto cruzava a Praça da Sé, avistou José e Severino na porta do restaurante. Ficou ali aguardando a chegada de seus patrões e, aproveitando-se da oportunidade, pediu permissão para passar a noite em um pequeno quarto nos fundos do estabelecimento, moradia de alguns dos funcionários. Apesar da negativa de Ho-Fung, que era conhecido por seu tratamento abusivo e humilhante em relação aos seus funcionários, um dos garçons permitiu que Arias entrasse, sem o conhecimento do dono. Escondido, Arias dormiu e aguardou que o restaurante estivesse vazio. Inicialmente, ele pretendia somente alimentar-se, mas acabou por decidir roubar o dinheiro guardado no cofre.

Na cozinha, o criminoso encontrou a sua arma do crime, o pilão. Lá mesmo, ele desferiu um golpe fatal na cabeça do lituano José Kilikevicius. Severino Rocha, que dormia no local, ao levantar-se, teria presenciado a cena e, diante da fúria de Arias, tornou-se a segunda vítima. Golpes violentos deferidos em suas cabeças, ceifaram brutalmente as vidas dos dois garçons.

O barulho dos ataques despertou Ho-Fung, que desceu apressadamente as escadas, encontrando-se face a face com o autor daqueles atos hediondos, desencadeando uma luta corporal intensa. Contudo, Arias, movido por uma raiva incontrolável, matou o chinês, também com pauladas, tirando sua vida com a mesma crueldade aplicada aos garçons.

Maria Akiu apareceu no topo da escada e, em desespero, foi perseguida até o quarto. Determinado, Arias a torturou para obter informações sobre a localização da chave do cofre, que supostamente continha dinheiro e joias, entretanto, tamanha foi a força imposta nessa tortura, que acabou por estrangular a mulher até a morte.

Em seguida, ele revirou as gavetas do cômodo, mas não encontrou nada de valor. Desceu até o salão, retirou 30 mil réis do bolso de Fung e dirigiu-se à cozinha, onde fez uma refeição antes de levar consigo o colchão em que havia dormido, guardando-o em um quarto nos fundos do estabelecimento. Todas essas ações foram realizadas sem acender as luzes, visando a não chamar a atenção. Por fim, Arias fugiu para seu quarto na rua Visconde de Parnaíba, onde passou a noite. Mais tarde, ele passou pelo restaurante chinês, mas foi impedido de entrar.

No dia 21 de maio, a prisão preventiva de Arias foi decretada.

A cidade, tomada por um misto de medo e curiosidade mórbida, aguardava ansiosamente o desfecho dessa sinistra trama. O jornalismo, sempre ávido por histórias de grande impacto, se alimentava dessa narrativa macabra.

No julgamento, que teve início em 31 de março de 1939, o advogado de defesa, Paulo Lauro, que viria a se tornar o primeiro prefeito negro de São Paulo, questionou a fragilidade das provas apresentadas pela acusação, desde os depoimentos até os exames periciais. Surpreendentemente, apesar das provas contundentes e da confissão de Arias, ele foi absolvido pelo júri, que considerou que ele fora coagido a confessar um crime que não cometera.

No entanto, a inocência de Arias foi o primeiro episódio de um longo processo. O promotor público Raphael de Oliveira Pirajá, inconformado com a decisão, recorreu ao Tribunal. Em 3 de junho de 1940, a 1ª Vara anulou a decisão do júri. Nos próximos 19 meses, Arias permaneceu detido.

No segundo julgamento, realizado em 9 de setembro de 1940, mais uma vez, o advogado Paulo Lauro conseguiu obter a absolvição de Arias. O Ministério Público apresentou novo recurso, mas, em 27 de agosto de 1942, a 2ª Câmara Criminal confirmou o julgamento anterior. No entanto, a decisão da Justiça não foi unânime. O desembargador Alexandre Delfino de Amorim Lima, em um voto vencido, afirmou: “Raramente um crime foi tão bem elucidado por um conjunto harmonioso de provas. Por essa razão, com convicção e consciência tranquila, defendi a condenação desse terrível criminoso”

Durante todo esse processo, a Frente Negra Brasileira, uma organização em defesa dos direitos e da dignidade dos negros, esteve ao lado de Arias, tendo contratado o advogado Paulo Lauro, que assumiu a defesa de Arias, obteve sua absolvição, conquistando notoriedade e, posteriormente, sendo eleito prefeito de São Paulo em 1947.

A história do restaurante e do crime que abalou a cidade de São Paulo deixou cicatrizes profundas na sociedade. Dividindo opiniões e abrindo discussões sobre preconceito racial e falhas no sistema de justiça. Enquanto as páginas dos jornais se enchiam de tinta e palavras enigmáticas, o caso do Órion ecoava por décadas, deixando cicatrizes indeléveis na memória da cidade e um mistério ainda não respondido: teria sido Arias de Oliveira o cruel autor desse episódio macabro, ou um inocente acusado injustamente que escapou da cadeia pela competência do seu advogado? 

Por Jorge Alves

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