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Por Drª. alessandra Jirardi

O Juiz Dr Pozzer foi um juiz humano, demasiadamente humano que transformou a realidade da aridez da justiça penal numa história real e transformadora. Um Magistrado que dedicou a sua vida à efetividade das garantias e direitos civilizatórios. Só um Juiz, profundamente comprometido com os valores da humanidade que nos constituem poderia ser protagonista dessa história que se inicia em 11 de Novembro de 2014.

Nesse dia, Antônio Tutão, agindo em concurso com outros três indivíduos e ajustados entre si, decidiram furtar uma loja de roupas.

Por ironia do destino, coincidentemente, na mesma Avenida em que estava cometendo o crime de furto simultaneamente o Banco Santander estava sendo assaltado mediante explosão.

A ocorrência foi irradiada nos rádios do COPOM da Polícia Militar e rapidamente os Policiais Militares se dirigiram ao local.

Os policiais alegaram que os autores do crime atiraram contra eles e Antônio foi acusado de cometer o crime de roubo qualificado pelo emprego de arma, concurso de agentes, desobediência e homicídio tentado qualificado contra os policiais para assegurar a execução do roubo a banco.

Antônio Tutão foi alvejado com vários disparos de arma de fogo durante a prática desse crime, sobreviveu, todavia, passou a viver em estado de tetraplegia. Todavia, em razão do estado tetraplégico, o pedido de prisão domiciliar foi concedido.

Tutão e os corréus furtaram a loja de roupas e ao fugirem após praticarem o furto, dirigiram-se sentido ordem crescente da Avenida, local dos fatos.

Só que bem ali próximo estava ocorrendo simultânea e coincidentemente um furto ao Caixa Eletrônico do Banco Santander, mais precisamente na Estrada Kizaemon Takeuti.

Os Policiais deram voz de parada a Tutão e corréus, no entanto, como haviam acabado de furtar a loja Essencial Shop, o acusado e corréus empreenderam e fuga, no entanto, os milicianos acreditaram que a fuga se dava por conta de um assalto a banco e iniciaram uma série de disparos de arma de fogo contra Tutão e demais corréus.

Tutão é um contumaz furtador e estava sim cometendo um crime, mas não de roubo e não poderia estar em dois locais ao mesmo tempo, ele foi confundido com os verdadeiros assaltantes do banco Santander. 

Na ocasião que se desenrolaram os fatos, durante a lavratura do flagrante, a Autoridade Policial recusou-se a ouvir as testemunhas de defesa, recusou-se a comparecer à cena do crime. Os Policiais Militares e os Guardas Civis Metropolitanos foram arbitrários e abusivos em suas ações, o que motivou uma representação para Instauração de Processo Administrativo Disciplinar nas Corregedorias em face dos Policiais.

Então, a denúncia foi recebida e se iniciou a ação penal contra Tutão na 7.ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo/SP. 

À época o Juiz Benedito Roberto Garcia Pozzer era o Juiz titular designado para julgar o processo de Tutão e a audiência de instrução e julgamento foi designada.

Eu havia apresentado Resposta à Acusação pedindo a Exclusão da Punibilidade pela Inimputabilidade diante do Incidente de Incapacidade em razão do estado de tetraplegia informando ainda que mesmo estando em prisão domiciliar meu cliente não possuía meios para se deslocar até o fórum.

Foi aberta vistas ao Ministério Público e qual não foi a minha surpresa ao me deparar com a cota ministerial do Promotor de Justiça pedindo para que o Juiz Dr Pozzer determinasse uma escolta e providenciasse uma ambulância para que o réu Tutão comparecesse escoltado de maca até o Fórum Criminal da Barra Funda.

Foi quando decidi me dirigir ao Fórum Criminal e solicitei uma audiência para despachar com o Juiz Dr Pozzer que com sua simpatia e elegância me recebeu imediatamente em seu Gabinete.

Expliquei que Tutão havia sofrido a agressão de oito disparos de arma de fogo de maior calibre. 

 Além disso, expliquei que estava atuando em caráter pro bono. Que Tutão estava em estado deficiente físico tetraplégico e ainda utiliza-se de sonda tendo em vista seu precário estado de saúde, que usa fraldas, não se alimenta sozinho, se quer pode beber água, enfim, vivia uma situação realmente lastimável, necessita de cuidados de enfermagem para o resto da vida, não responde mais a estímulos, não se comunica com seus cuidadores, Tutão vegetava sobre os cuidados dos seus familiares e vive uma situação paupérrima, em meio à Favela na Comunidade do Jardim das Camélias na Zona Lesta de São Paulo.

Apresentei os laudos médicos, comprovando que Tutão necessita de tratamento intensivo (medicamentoso), sem condições de tratamento em Unidade Prisional Convencional.

Expliquei ao Juiz Dr Pozzer que o pedido do Ministério Público para que uma ambulância fosse buscar Tutão para participar de uma audiência no Fórum, deitado numa maca era desumano.

Então, o saudoso Juiz Dr Pozzer, com seu olhar singelo me disse que jamais iria desconsiderar  a condição humana do meu constituinte, reforçou que os Direitos Humanos é preceito fundamental expresso em nossa Carta Magna, ápice do nosso ordenamento jurídico, olhou mais uma vez nos meus olhos e disse: 

– eu vou fazer essa audiência num barraco na favela, mas na minha Vara eu não vou permitir que um réu seja obrigado a ser submetido a julgamento deitado numa maca em estado de tetraplegia.

Respirei aliviada, afinal o que aquele Promotor pedia era desumano. E a noção de dignidade está sujeita a diversas imprecisões, o que leva a arbitrariedades em alguns casos, como esse posicionamento do Promotor. Diante disso, seria mais adequado interpretar o princípio da dignidade humana como redutível às ideias de igualdade de consideração e de respeito à autonomia pessoal, permitindo que ele desempenhasse seu papel e evitando diversos dos abusos e imprecisões, o que ocorreu.

Então, o Dr Pozzer, o juiz mais humano que conheci em toda minha vida designou audiência de instrução e julgamento presencial num barraco numa Favela e assim fomos, eu, advogada representando o réu Tutão, uma Promotora de Justiça e o Juiz Dr Benedito Pozzer. 

Em 09 de Outubro de 2015, num barraco na Favela o Juiz Dr Pozzer apregoou a Audiência de Instrução e Julgamento para coleta do interrogatório judicial do réu Tutão.

Interrogado, em juízo, na Favela, em seu barraco quente, abafado, mal iluminado e no leito em razão da tetraplegia, o réu Tutão confessou a autoria em relação ao crime de furto e negou a autoria em relação ao roubo ao banco.

Um pequeno ventilador buscava, sem êxito, minimizar os calores enquanto os trabalhos ocorriam regados a café coado, servido pela simpática e amorosa mãe do réu Tutão.

Dr Pozzer foi um Juiz que possuía inúmeras qualidades: integridade, vocação verdadeira, profundo sentimento de justiça, cultura não só jurídica, dedicação ao estudo e às causas que lhe eram submetidas, discrição, coragem, mas principalmente, a humanidade. 

Eu estava profundamente emocionada naquele momento em que defendia meu frágil cliente. E o meu turbilhão de emoções foi pela grandiosidade do Juiz Dr Pozzer.

Quando saímos do local, numa conversa informal, ele perspicaz percebeu minha emoção, virou e me disse: – Dra, entre o legal e o justo, deve preferir este; e, entre ser justo ou mais humano, certamente o último, por estar mais perto do verdadeiro ideal de justiça. 

Após alguns dias, em sua sentença, que demonstrou toda sua grandeza de alma, profundo sentimento de justiça e calor humano, condenou o réu confesso Tutão a 3 anos de prisão domiciliar.

O Dr Benedito Roberto Garcia Pozzer se formou em Direito pela Universidade de São Paulo e ingressou na Magistratura, em 1991. Ao longo de sua trajetória trabalhou nas comarcas de Nhandeara, Piraju e São Paulo. Também atuou como juiz assessor da Presidência do TJSP (2006/2007), da Corregedoria Geral da Justiça (2016/2017) e da Presidência da Seção de Direito Criminal (2018). Aposentou-se em fevereiro de 2021, como juiz titular da 7ª Vara Criminal de São Paulo onde julgou o caso aqui narrado e faleceu em 29 de Maio de 2021.

Nos dias de hoje, em que predominam os excessos punitivos, um Magistrado humano e garantista como o Dr Pozzer é uma figura histórica que jamais pode ser esquecida.

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