Violência contra a mulher: como abordar o tema com crianças?

Na última semana, os noticiários repercutiram as prisões dos ex-jogadores Daniel Alves e Robinho. Enquanto o segundo foi preso, o primeiro, já condenado, vai esperar o julgamento do recurso em liberdade.

Os acontecimentos, mais do que escancaram crimes cometidos por esportistas, causam (ou deveriam) também enorme preocupação para os pais a mães, afinal os atletas também representam ídolos de crianças e adolescentes.

Afinal, o mundo do esporte sempre foi responsável por “fornecer” modelos de comportamento para as próximas gerações. E, portanto, é inevitável que responsáveis pela educação de crianças se sintam confrontados com as sombras que surgem entre os chamados “heróis” dos campos de futebol.

Para além dos julgamentos dos crimes em questão, os episódios lançam uma luz intensa sobre um aspecto da nossa sociedade: a educação dos meninos e rapazes para um futuro de respeito e igualdade. Ou seja, é preciso, sim, celebrarmos os feitos esportivos de atletas em seus respectivos esportes, mas precisamos, ainda mais, enfrentar com urgência os exemplos que eles dão quando negativos. E, principalmente, usar esses casos para desconstruir a cultura do estupro e da violência contra a mulher.

Por isso, na coluna da semana, vamos abordar a importância de educar nossos jovens para serem agentes de mudança em um mundo onde a integridade e o respeito não são apenas desejados, mas exigidos.

ENSINAMENTO QUE PARTE DE CASA

É claro, que há limites de idade para abordar temas como esse. Afinal, muitos pequenos apaixonados por futebol não têm maturidade para entender o que é um estupro, mas já podem entender o que é desrespeito e a importância de ouvir e atender o “Não”, quando se trata de invadir o espaço dos amiguinhos e amiguinhas, por exemplo.

E dá para ir além. Na casa de Paula Nogueira, mãe de João Pedro, de 11 anos, o respeito às mulheres é assunto recorrente. De uma família que para os padrões dos anos 80 poderia ser considerada feminista (as tarefas com casa, filhos e planejamento financeiro eram igualmente divididas entre seus pais desde sempre, e ela e seus irmãos também tinhas as mesmas responsabilidades), ela conta que o filho seguiu o mesmo caminho.

“João nunca contestou algo que eu pedisse, dizendo ser coisa de menina. Arruma a cama e o quarto, dá opções de cardápio, cozinha algumas coisas e se vira super bem na rotina da casa. E também organiza a roupa suja para lavar, especialmente porque tem jogo quase todos os dias. Então, desde muito cedo eu converso sobre tudo com ele, inclusive igualdade de gêneros. É claro que usando exemplos como esses, de meninos e meninas fazerem as mesmas coisas e terem as mesmas obrigações, por conta da idade dele”, explica.

E esse diálogo sempre aberto sobre variados temas permitiu, inclusive, que o assunto dos jogadores acusados de estupro fosse levantado. Como o menino joga futebol, e é natural que seus ídolos acabem brotando desse ambiente, Paula puxou o assunto não apenas para enfatizar o respeito que deve haver com as mulheres, mas também para saber o que o filho pensava sobre o assunto. “João treina com meninos de classes mais e menos privilegiadas.

E independentemente da classe social, todos foram unânimes em afirmar que foi um comportamento horrível. Pelo que percebi, todos se decepcionaram com a conduta dos dois jogadores,”, comentou.

Ela lembra, ainda, que o abuso com o corpo do outro não aparece nas conversas com o filho apenas quando um caso como esse é divulgado. “Em casa, eu e meu marido sempre explicamos e damos exemplos de abordagens maliciosas e de caráter duvidoso,  principalmente por pessoas conhecidas, para ele ficar de olho e falar se presenciar algo.

Converso muito abertamente sobre abuso,  estupro e vulnerabilidade,  de forma que ele consiga ter a sutileza de perceber quando determinada fala ou comportamento parecer ‘estranho’. E temos um combinado para que, quando se sentir incomodado ou desconfortável em alguma situação, use nossos ‘códigos falados’. Dessa forma, não precisará dizer o que está incomodando, mas sinalizará que eu preciso tirá-lo de alguma situação ou buscar se ele não estiver conosco”.

E os ensinamentos sobre consentimento e respeito, no caso de João, não foram levantados apenas em casa. Na escola, o tema tem sido abordado constantemente. “Já houve discussão em sala e diversas rodas de conversa sobre a abordagem em relação ao “Meu corpo, minhas regras”, explicando e enfatizando porque as pessoas só podem  encostar em qualquer parte do corpo do outro ou sugerir qualquer coisa se a pessoa permitir”, enfatiza.

DIRETO AO PONTO

Muitas vezes, quando um assunto é tão urgente quanto esse, buscamos por respostas assertivas que saciem as nossas dúvidas e angustias. Por isso, reunimos perguntas e respostas que podem ajudar pais e responsáveis a levantarem esse assunto com seus filhos, sejam meninos ou meninas, para construir indivíduos prontos à combater qualquer tipo de violência, ainda que praticados por quem admiram.

Abaixo, Celeste Leite dos Santos, Promotora de Justiça em último grau do Ministério Público (MP) de São Paulo, Coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero do Ministério Público (MP) de São Paulo, Presidente do Instituto Pró-Vítima, Coordenadora da Revista Internacional de Vitimologia e Justiça Restaurativa; e Idealizadora da Lei Federal de importunação sexual e do Estatuto da Vítima; Luciana Inocêncio, Psicóloga, Psicanalista e Autora dos livros “Psicanálise Presente na Vida Cotidiana” e “As aventuras de Elvis”; e Luciana Garcia, Psicóloga, Psicopedagoga e Neuropsicóloga; Autora do livro “A Negação da Infância e organizadora do livro Autismo: práticas e intervenções” e Co-autora dos livros “Autismo – um mundo singular”, “Autismo: um olhar por inteiro” e “Manual da Infância: os desafios dos pais” respondem algumas questões que podem ajudar pais e responsáveis nesse tema.

Como você descreveria a cultura do estupro e quais são suas principais características?

CELESTE LEITE DOS SANTOS – Precisamos mudar essa terminologia, que, assim utilizada, perpetua estereótipos de gênero na sociedade. Cultura é um conjunto de atividades, de instituições, e de padrões sociais ligados à criação e à difusão das belas-artes, e das ciências humanas, só para citar algumas possibilidades. Estupro é uma conduta violenta contra a dignidade e a liberdade sexual. Não podemos associar algo que tem de ser combatido com algo que pode ser difundido em nossa sociedade. Na História, o estupro, como forma de violência contra as mulheres, surgiu no início da Idade Média, quando elas passaram a ser protagonistas em cenários políticos, como senhoras feudais e nas cruzadas, contrariando o papel que lhes era atribuído, o de esposas, de cuidadoras da casa e dos filhos. A violência contra a mulher, em especial a sexual, como algo até então “autorizado” em nossa sociedade, passou, então, a ser difundida, agregando-se predicados à mulher – como “não honesta”, por exemplo. Havia uma espécie de autorização, tácita, no passado, de que, quando em espaço público desacompanhada do marido, ela poderia ser objeto de violência, sendo irrelevante o seu consentimento para a prática do ato sexual. Desde então, lutamos para extirpar esses estereótipos do nosso meio social, para que haja igualdade efetiva entre homens e mulheres, em espaços públicos e privados. Como principais características do estupro, podemos apontar a ausência de permissão da vítima e a violência física ou moral. Importante destacar, ainda, que o consentimento de pessoa menor de 14 anos não é válido em nosso País, pois a vulnerabilidade da vítima é considerada absoluta. Aquele que pratica ato libidinoso ou conjunção carnal com menor de 14 anos, inclusive, responde por crime mais grave, que é o estupro de vulnerável.

LUCIANA INOCÊNCIO – O termo foi criado na década de 1970 por feministas americanas e é utilizado para descrever um ambiente no qual o estupro é predominante e a violência sexual contra mulheres é normalizada na mídia e na cultura popular. Termos que difamam mulheres permitem a objetificação de seus corpos e glamurizam a violência sexual. A cultura do estupro traz que a mulher não é um ser humano, e, sim, “uma coisa”. Vivemos numa sociedade patriarcal que considera que nós, mulheres, somos ou sujeitos de segunda categoria, ou, em alguns casos, que não somos sujeitos e podemos ser utilizadas ou destruídas. Ressaltando que a cultura do estupro começa no nascimento, quando a família recebe o bebê. O recém-nascido vem com várias expectativas: se for menino, espera-se que seja agressivo; se for menina, espera-se que seja delicada. São roteiros pré-determinados para cada genero.

Quais são os maiores desafios enfrentados na luta contra a cultura do estupro e na promoção da igualdade de gênero?

CELESTE LEITE DOS SANTOS – Os principais desafios residem na ausência de políticas públicas e sociais preventivas, que esclareçam que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres, devendo ser compartilhada a gestão da vida em comum, de acordo com os próprios consortes, visando à obtenção do bem de ambos e da família. A decisão é do casal no compartilhamento de tarefas, mas, em geral, a mulher acaba assumindo papel mais decisivo no espaço privado, o que prejudica que assuma funções mais relevantes na esfera pública, ou, quando não, ela fica sobrecarregada. Claro que não existem regras absolutas. Contudo, a decisão não pode partir de padrões sociais impostos – da mulher como cuidadora, e do homem como provedor. Esse papel feminino, como de menor relevância, traz para os homens uma autorização implícita para a prática de diversas violências contra as mulheres, de abusos verbais e morais e até mesmo à prática de estupro. A Constituição Federal prevê que a Segurança Pública é um direito fundamental de responsabilidade do poder público e da própria sociedade, que precisa exercer a cidadania com sabedoria e, também, se envolver nessa luta. Sabemos que, grande parte da subnotificação dos crimes de estupro reside no medo e na vergonha da vítima de ser submetida a opiniões e a julgamentos de terceiros. É preciso realizar uma escuta sem juízo de valor para poder acolhê-la. Todos nós podemos ser redes de apoio para aquelas que precisam. Um exemplo disso é a criação, no estado de São Paulo, por força de lei, do protocolo “Não Se Cale”, que obriga bares, restaurantes, espaços de eventos, hotéis e estabelecimentos do setor de lazer a prestarem auxílio diante de qualquer pedido de socorro ou suspeita de caso de assédio, de violência, ou de importunação sexual. O protocolo foi elaborado baseado num caso de estupro ocorrido numa boate em Barcelona, na Espanha, e que repercutiu mundo afora. Graças a uma atuação decisiva da casa noturna, e de toda a sociedade espanhola, no episódio, a investigação foi iniciada e obteve-se uma resposta rápida do Estado ao crime praticado.

Qual é o papel dos pais na prevenção da violência sexual e na promoção do respeito pelas mulheres entre seus filhos?

LUCIANA INOCÊNCIO – A prevenção da violência sexual começa com a educação sexual. Só que muitos pais ainda tem tatu em conversar sobre sexualidade com seus filhos. Porém, esta é uma das formas mais eficazes de prevenir e de enfrentar o abuso sexual contra crianças e adolescentes. Ensinar, desde cedo e com abordagens apropriadas para cada faixa etária, conceitos de autoproteção, consentimento, integridade corporal, sentimentos e a diferença entre toques agradáveis / bem-vindos e toques que são invasivos / desconfortáveis é fundamental para aumentar as chances de proteger crianças e adolescentes de possíveis violações. O diálogo sobre temas que envolvem sexualidade pode trazer muitos benefícios para a saúde sexual, física e emocional de crianças e jovens. Saber a hora e a melhor maneira de falar sobre sexualidade com as crianças e adolescentes é muito importante. Respeitar as fases de crescimento e o que abordar em cada uma delas pode ajudar a evitar equívocos na maneira de lidar com a questão, respeitando formas de expressão da sexualidade, sem reprimi-las, e empoderando meninas e meninos sobre o seu próprio corpo. Contudo, a educação é fundamental para criar meninos que respeitam meninas e mulheres. Ensiná-los, desde cedo, sobre igualdade de gênero, empatia e respeito mútuo é o caminho para um futuro mais igualitário. Abaixo, compartilho algumas dicas para inspirar e ensinar os pequenos a serem parte dessa mudança:

  • Promova o exemplo em casa: demonstre igualdade de gênero em suas próprias atitudes e relacionamentos familiares;
  • Converse sobre consentimento: ensine, desde cedo, que é fundamental respeitar o espaço pessoal e as decisões dos outros;
  • Desconstrua estereótipos: encoraje interesses diversos, independentemente de serem considerados “masculinos” ou “femininos”;
  • Incentive a empatia: ensine-os a entender e a considerar os sentimentos dos outros;
  • Promova a diversidade: exponha-os a diferentes culturas, experiências e histórias que demonstrem a importância da equidade;
  • Seja crítico em relação à mídia: discuta representações de gênero na mídia e ajude-os a entender a diferença entre ficção e realidade;
  • Promova a comunicação aberta: esteja sempre disposto a ouvi-los e a responder a perguntas;
  • Ensine habilidades emocionais: ajude-os a identificar e a expressar suas emoções de maneira saudável.

Como podemos envolver os pais e a comunidade na educação sobre consentimento e o respeito mútuo desde cedo?

CELESTE LEITE DOS SANTOS – A escola desempenha papel fundamental na integração entre família e comunidade. É importante que o meio escolar seja visto como referência, com direito à oferta de atividades extracurriculares, de reuniões periódicas com os pais e de inclusão no currículo escolar de temática referente ao respeito às diferenças, além de realização de campanhas de esclarecimento sobre o direito ao próprio corpo – e não a condição de objeto de desejo do outro. As consequências também merecem atenção. Isso porque, ainda que a prática de sexo não consentido por adolescente contra outra pessoa seja considerada um ato infracional, não significa que não existam consequências. Devemos sempre lembrar que, além da vítima direta da prática do estupro, temos as vítimas indiretas, como os familiares, que sofrem com o trauma de seus filhos, e uma vitimização coletiva, uma vez que há o temor generalizado entre as pessoas de ser a próxima vítima.

Em sua opinião, qual é a importância de desafiar estereótipos de gênero e normas sociais prejudiciais na educação das crianças?

LUCIANA GARCIA – Quando educamos as crianças baseados em qualquer tipo de estereótipos, limitamos a visão de mundo e criamos pessoas preconceituosas e pouco tolerantes com tudo o que é diferente ou foge à norma. Como consequência, muitas vezes, encontramos a violência, o bullying. Além disso, com esse tipo de educação, colocamos todas as crianças em formas, e as ensinamos, de maneira velada, que a opinião delas não importa; que não devem se posicionar; que devem aceitar coisas e situações sem reclamar, “porque é assim e pronto”. Resumindo: criamos tanto os agressores quanto as vítimas da sociedade.

Que iniciativas ou programas você considera eficazes na prevenção da violência sexual e na promoção da igualdade de gênero entre os jovens?

CELESTE LEITE DOS SANTOS – O programa Infovítimas Brasil, desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Atenção e Apoio Integral a Vítimas (Pró-Vítima), foi inspirado num projeto com origem na União Europeia e que se expandiu para diversos países. Esse programa traz informações relevantes sobre vitimização, suas causas, como identificá-las e, também, abarca um mapa dos serviços de acolhimento no Brasil. Na esteira de trabalhos nesta temática na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), podemos citar o projeto de lei 130-2016, que estabelece a igualdade plena de homens e mulheres em todos os setores da vida. Importante também citar o Estatuto da Vítima (Projeto de Lei 3.890-2020), que conta, há tempos, com pedido de urgência para votação na Câmara dos Deputados. Ainda podemos mencionar a lei que obriga síndicos a denunciarem situações de violência doméstica e familiar no Estado de São Paulo, bem como o protocolo “Não se Cale”, que citei anteriormente. O Ministério Público (MP), por meio da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, também desempenha função relevante no combate a festas clandestinas promovidas por empresas inescrupulosas, em locais sem qualquer tipo de segurança e que colocam em risco a vida e a saúde de nossos filhos.

LUCIANA GARCIA – Quando falamos em educação sexual, muitos pais são contra, com medo de que as escolas incitem algum tipo de sexualidade precoce. Isso ocorre por total falta de informação. As pessoas desinformadas entendem por sexualidade o ato sexual, quando, na verdade, vai muito além disso. Sexualidade envolve higiene pessoal, autocuidado, respeito com o próprio corpo e com o corpo do outro, com amor próprio. Tudo isso pode e deve ser ensinado desde quando a criança é pequena, desde o desfralde. Portanto, é válido implantar desde cedo este tipo de tema nas escolas, desde a educação infantil. A educação sexual se faz necessária. Porém, deve-se tomar muito cuidado com os profissionais que assumirão esse papel. O ideal é contratar equipe especializada e treinada, que trabalhe na educação dos alunos e na capacitação e no treinamento de professores e dos pais. Os educadores precisam estar aptos a identificar, inclusive, situações na escola; a acolher e a ouvir, pois, muitas vezes, serão em quem as crianças e os adolescentes mais confiarão no momento em que mais precisarem. Então, se a escuta não for acolhedora, especializada e adequada, o aluno que está vivenciando algum tipo de situação não vai se sentir acolhido.

Quais são as estratégias mais eficazes para conscientizar a sociedade sobre a importância de combater a cultura do estupro e promover a igualdade de gênero?

LUCIANA GARCIA – Normalizando o diferente e não banalizando, como tem acontecido muito, e infelizmente, nos dias de hoje. Tornando o assunto sexualidade num tema corriqueiro, sobre o qual é normal falar e tirar dúvidas, e não como tabu. Muitas vezes, as crianças e os adolescentes não procuram seus pais para conversar sobre o assunto, porque os adultos, em casa, não recebem esse tipo de tema da mesma forma que recebem outros. Os pais mostram, de forma inconsciente, que é errado falar sobre isso. Sem pessoas de confiança com quem conversar, essas crianças e adolescentes buscam informação em outros lugares, com outros sujeitos, e, muitas vezes, o tipo de informação que recebem não é adequada. Pelo contrário – pode ser fruto de muito preconceito, de desinformação e de ignorância.

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Por Priscila Correia, colunista de AnaMaria Digital

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